Nunca havia cobrado um pênalti por cima do gol. Acho que foi o (Ayrton) Senna que puxou aquela bola para o alto. Acredito que foi ele que fez o Brasil vencer. (...) É uma ferida que nunca vai se fechar. Sempre sonhei disputar uma final de Copa do Mundo e o rival dos meus sonhos era o Brasil. Quando tive a oportunidade, desperdicei aquele pênalti. (...) Na hora, quis cavar um buraco para me esconder. Depois, pensei que, como o Brasil tem muito mais habitantes que a Itália, eu fiz mais gente feliz com aquela cobrança.

Baggio, em entrevista para o programa Esporte Espetacular em 2010.
 

Natural da cidade italiana de Caldogno, uma comuna italiana de cerca de 10 mil habitantes, uma das 121 da província de Vicenza, Roberto Baggio, teve no clube homônimo da capital de sua região, o Vicenza, as suas primeiras referências de futebol. Era o sexto filho de uma família tradicional católica, de oito irmãos. Assim como muitos garotos de sua idade, era apaixonado por futebol e desfilava seu talento pelos campos baldios disponíveis. Numa dessas partidas casuais, fora observado por um olheiro, que o indicou para o clube local, sendo o Caldogno, a base geratriz dessa futura lenda do Calcio.

Ainda na infância, o interesse do pequeno Baggio pelo futebol envolvia curiosidade e fascínio que extrapolavam as fronteiras de seu país. Era um fã assumido do craque Zico, mesmo antes desse jogar na Itália. Baggio já dissera em algumas ocasiões que chegou a sintonizar jogos do Flamengo para ver o Galinho de Quintino em ação. E não pára por aí, também admitiu vir da infância sua admiração pelo clube argentino do Boca Juniors, que segundo ele, o impressionara por ter uma torcida tão apaixonada e vibrante. O sangue latino, que também corre nas veias dos italianos, parecia vibrar efusivamente em Baggio. Também é um fato curioso que o primeiro jogador que ele vislumbrou numa partida em um estádio de futebol, fora o brasileiro Chinesinho, meia habilidoso que jogou entre 1953 e 1974, passando por clubes como Palmeiras, Internacional e com carreira no exterior, passando pelos italianos, Juventus, Modena e Catania, assim como o modesto Vicenza, clube do qual foi técnico em 1976. Chinesinho, embora não tenha ido as Copas de 1958 e 1962, era uma figura constante na seleção brasileira, e foi campeão do Torneio Pan-Americano de 1956 e da famosa Copa Roca em 1960.

Como um processo natural, as exibições vigorosas de Baggio, ainda como juvenil, chegaram rápido ao conhecimento do Vicenza, que convidou o jogador para a categoria de base em 1982, quando ele, nascido em 1967, completara seus 15 anos de idade. Vale lembrar o que o ano de 82 representa na história do futebol e principalmente para os italianos, com seu título mundial. Mas como sabemos aquela copa ficou marcada também pelo futebol apresentado pela seleção brasileira, e os craques daquele time desde a chegada de Paulo Roberto Falcão,  em 1980 à Roma, Zico ao Udinese em 83, significavam uma invasão latina no Calcio. Aliás, também em 1982, Falcão foi o maior protagonista do título romano, que não ocorria desde 1942. Todo esse caldeirão cultural, gerou em Baggio uma admiração e tratamento diferenciado com a cultura latina e principalmente o povo brasileiro, o que sabemos pelo desenrolar de sua história, ser mais uma das doces ironias do destino.

VICENZA- OS PRIMEIROS CONCERTOS DE UMA LENDA

Entre 1982 e 1985, anos que Baggio jogou no Vicenza, disputou 107 partidas oficiais, logrando 56 tentos, o que é um bom número, pois no clube o futuro meia-atacante, ainda jogava como armador, procurando passes precisos e participando na armação das jogadas. Por demonstrar esse talento típico de um camisa 10, seu primeiro técnico na equipe, o apelidara de Zico (!!!). O apelido trouxe sorte, e foram 46 gols em 48 jogos pela equipe juvenil. Apesar de sua pouca idade, o jogador foi fundamental no acesso para a Serie B do Vicenza em 1982, já entre os profissionais, então com 16 anos, marcou doze gols e foi decisivo na campanha vitoriosa.

Seu talento e estilo de jogo já o classificavam como uma promessa do futebol italiano, mas nessa época, longe dos holofotes principais da Serie A, a habilidade era punida com forte marcação, muitas vezes desleal. As constantes faltas sofridas, geravam lesões, e ainda jovem, Baggio conheceu um grande inimigo de sua carreira, seu próprio joelho. Ao decorrer da passagem pelo Vicenza, acumulou certa insegurança, natural de um jovem em crescimento e questionando o mundo. Tratava com tanto cuidado e respeito a opinião pública, que fez disso uma espécie de obsessão, ser bem comentado para seguir em um bom curso, era uma preocupação pungente, que tomava o psicológico do bom jogador.


No seu último ano no clube, recebeu o seu primeiro convite para uma grande equipe italiana, os dirigentes da Fiorentina foram astutos em efetuar a contratação do jogador. Era um momento de festa, já consciente da mudança para um novo clube, parecia flutuar em campo nas suas última partidas pelo time, de felicidade e também o desejo de mostrar serviço. Tanto, e com tal afinco, que pela primeira vez, outro personagem em sua carreira lhe dá as faces, o destino. O craque sofreu uma contusão tão grave, em sua último jogo pela série C1, contra o time do Rimini, em 1985, que teve os ligamentos do joelho rompidos, de forma que foram necessários 220 pontos na perna, para costurá-la. Nesse período, temeu deixar os gramados precocemente, porém, a Fiorentina decidiu arriscar mesmo assim e levar o ídolo, para recuperá-lo.

FIORENTINA - MUDANÇA DE ARES E CONSCIÊNCIA


Antes de qualquer coisa, permita-se a um pequeno exercício de empatia (*habilidade de se colocar no lugar de outra pessoa), imagine-se um garoto vindo de uma numerosa família pobre, apaixonado pelo futebol, que nasce com o dom de exercê-lo virtuosamente, em uma época de craques, Zico, Maradona, Falcão e outros, que você irá enfrentar em suas primeiras partidas pela divisão principal do campeonato italiano. Alguns ídolos da sua infância. Imagine a pressão e a felicidade explodindo na mente de um jovem, vindo de uma cidade pequena. Pense em como isso, já em condições normais, poderia ofuscar e até abreviar uma linda história, pelo simples frio na barriga. Agora adicione a isso, uma contusão seriíssima, você tem 18 anos, e os médicos já lhe advertiram, que voltando a jogar futebol, se você conseguir, as dores fortes que você tem sentido, farão parte de um período na sua vida, e provavelmente lhe acompanharão por toda a sua "possível" carreira.

Pois sim, esse foi o enredo com o qual Baggio se transfere à Fiorentina. Demoraria a estrear. Insegurança potencializada, desconfiança da imprensa e dos dirigentes, curiosidade da torcida e opinião pública. Pressão interna e externa. E dor, muita dor. Durante esse período, o jogador se encontrava recluso em sua nova casa, sem ao menos desfrutar sua nova vizinhança, sua nova cidade, os psicólogos do clube temiam que isso pudesse atrapalhar em todo o processo da sua adaptação e até em sua cura. Nesse período conturbado, o jogador admitiu que não ia muito às ruas para não ficar longe de sua bolsa de gelo, e também pra que não pensassem, que estaria a trocar a diversão pelo foco na recuperação.

Já se passavam um ano e meio de sua lesão, Baggio finalmente consegue estrear pelo novo clube, em 21 de setembro de 1986 contra a Sampdoria, marcando seus primeiros gols logo nas primeiras partidas! Porém uma nova lesão no mesmo joelho,
dessa vez, uma operação na França, de caráter delicado, foi necessária. Nesse período, um amigo do jogador decide apresentá-lo ao budismo, como forma de lhe recomendar a meditação para acalmar a sua ansiedade. Curiosamente, as coisas começam a fluir com menos fatalidade para o jogador, mesmo com o desgosto de sua família pela decisão, se converte com muita convicção e energia à nova religião.


O ano de 1987, decorre por ser o que pode se chamar de novo nascimento ou estreia definitiva de Baggio na Serie A. Boas atuações e os gols voltam normalmente a ser constantes. A adaptação ao novo clube é um caso de sucesso. No estádio "San Paolo", contra o Napoli, de Diego Maradona, Baggio marca um de seus mais emblemáticos gols, uma cobrança de falta à la Zico, que impede o rebaixamento de seu clube, o jogo foi marcante pois precisando apenas de um empate, a equipe do Napoli se sagra campeã, na penúltima partida do campeonato.

Na temporada seguinte, Baggio apresenta um futebol mais vibrante a cada jogo, vindo também sua primeira convocação à seleção nacional. Um estilo corajoso, veloz, explosivo, pulsante e dribles geniais começam a assombrar todo o país, finalmente rompe seu status de promessa, para se cadastrar como realidade. Embora, como proferido pelos médicos, as suas lesões ainda ocorrem de vez em vez, seu cuidado com o joelho sempre será constante, mas um destemido Baggio parece ignorar esse capítulo e encara zagueiros, explode em velocidade e ritmo, encanta até as torcidas adversárias. Na temporada 1989/90, o clube seria vice-campeão da Copa da UEFA, perdida por 2 x 3 para a rival Juventus. Mesmo perdendo a final, Baggio se torna artilheiro e melhor jogador do campeonato.

Na temporada que marcaria sua despedida, contra o Napoli, mais uma vez em um duelo contra Maradona, o jogador desrespeita a entidade, com um desconcertante drible, deixando-o no chão, parte do meio campo enfileirando coadjuvantes, dribla o goleiro e marca um dos gols mais bonitos da história do campeonato italiano.

 


JUVENTUS - MAIS UM GOLPE DO DESTINO

É de se imaginar a admiração que Baggio nutria por Florença e o clube que o ressuscitou para o esporte. A derrota para o Juventus na UEFA, lhe privou da possibilidade de comemorar seu primeiro título, foi algo sofrido, ainda mais para um clube que anos antes, brigava pelo não rebaixamento. Aí vem o destino, com uma proposta da Juventus, que é imediatamente aceita pela Fiorentina, mas não é nada bem vista pelos torcedores. Protestos, ameaças e até atos de vandalismos em Florença marcam a troca entre as duas esquadras. O próprio jogador demonstrou não querer a contratação. O que ninguém imaginaria é que ele se sagraria como um dos maiores artilheiros da Velha Senhora.

Na sua primeira partida contra a Fiorentina, Baggio é tomado de comoção, se recusa a bater um pênalti contra o time, o penal é perdido por seu companheiro de equipe e no fim do jogo, após beijar um cachecol do antigo clube, ainda em lágrimas, ele é quase linchado pela torcida do novo clube.
 

Mesmo sendo considerado um nome certo na Copa do Mundo de 1990, o então treinador italiano Azeglio Vicini, escolhe como titulares Gianluca Vialli e Carnevale. A dupla não engata como o esperado nas duas primeiras partidas e escalado para o terceiro jogo, contra a Tchecoslováquia, Baggio marca um dos gols mais bonitos da competição.

Como é sabido seu status de ídolo em Turin, o seu crescimento gradual vem a cada jogo. Na temporada de 92-93, conquista a Copa da Uefa, seu primeiro troféu, e também o título individual de melhor jogador da Europa, que lhe rendeu a Bola de Ouro daquela temporada. O craque havia marcado também nesta boa safra, seu centésimo gol pela Serie A.

Com todos esses atributos, já é de se imaginar como era a espectativa para a Copa do Mundo de 1994, como estavam os ânimos e a imprensa italiana. Nenhuma seleção era vista à altura da azurra, do outrora gigante Brasil, desmoralizado na Copa de 1990, só se sabia do hype do brilhante Romário. Nas duas primeiras partidas da Copa, são derrotados pela Irlanda e vencem a Noruega. Um ambiente hostil chegou a ser vivenciado nos bastidores, Baggio mostra sua face mais intimidadora e causa desentendimento com o lendário treinador
Arrigo Sacchi.

Nas oitavas-de-final, após a dificuldade em garantir a classificação, alguns apontam o vibrante esquadrão da Nigéria como favorita. Baggio empata o confronto no último minuto do tempo regulamentar, e marca o gol da vitória, de pênalti. Neste jogo, sente uma fisgada na coxa, mas omite dos médicos com medo de ser afastado do time titular.

Após passar pela Espanha nas quartas e a Bulgária de Stoichkov na semifinal, aliás onde fora decisivo marcando dois gols, a sua contusão torna-se visível, e o técnico chega a questionar se conseguiria jogar contra o Brasil na final. Segundo o jogador, enfrentar os brasileiros na final era um sonho, quase tão  importante quanto o de ganhar a Copa. E sem poetizar muito o momento, todos sabemos o que ocorreu naquela partida.


Para curar a ressaca midiática, a temporada de 95-96, foi a mais vencedora do craque pela Juventus, vencendo a Copa da UEFA, em final contra o Parma, a Copa da Itália e o campeonato nacional, sendo artilheiro e melhor jogador do campeonato, dos títulos individuais possíveis, perdera apenas a bola de ouro pra George Weah.

Pelo clube de Turin, Baggio marcou 325 gols em 341 jogos.

PÓS COPA DE 1994

 
Após a brilhante temporada, foi vendido como grande contratação ao time do Milan, que venceu o Calcio no mesmo ano. Poucos jogadores foram campeões em dois anos consecutivos por equipes diferentes. A carreira seguia regularmente, até mais uma nova grave lesão, vale dizer que, pequenas lesões eram constantes, em 1997, motiva o craque para se transferir a um time menor, o Bologna, a ideia era diminuir as atenções e poder se concentrar apenas no futebol, e deu certo. Foram 42 gols na temporada, e mais uma vez foi o principal jogador do campeonato italiano.
Cesare Maldini decide levar Baggio ao Mundial de 98, mas sob muita contestação, vale lembrar que ele havia ficado de fora da seleção na Eurocopa de 1996. Na França, a estreia foi contra o surpreendente Chile, que teria vencido não fosse o papel fundamental de Baggio: deu a assistência par o gol de Christian Vieri e, a cinco minutos do fim, empatou a partida em 2 x 2 - ironicamente, de pênalti.

Marcou outra vez nos minutos finais em outra partida finalizada em vitória por 2 x 1, o terceiro jogo da Copa, no clássico contra a Áustria, garantindo a classificação italiana para as oitavas-de-final. Após passar pela Noruega, a Itália acabaria eliminada pela anfitriã: contra a França, a classificação às semifinais seria decidida nos pênaltis. Baggio, desta vez o primeiro italiano a cobrar, acertou, mas, a despeito do erro do francês Bixente Lizarazu, os azzurri Demetrio Albertini e Luigi di Biagio acabariam errando também. A Copa encerrou-se ali para os italianos, mas credenciou a Baggio uma transferência para a Internazionale.


Pelo novo clube, formaria uma memorável dupla de ataque com o craque Ronaldo, que definitivamente chegou ao Calcio para ofuscar tudo em sua volta, não foi diferente com Baggio, que começou novamente a passar mais tempo no setor médico, do que em campo. Também pela Inter o craque travou um duelo pessoal contra seu antigo treinador na Juventus, Marcelo Lippi, o qual o jogador acusava de perseguí-lo:

 

O Lippi que tive na Inter declarou guerra contra mim, sem parar por um minuto, sem um motivo plausível, sem nenhum sentido, sem uma lógica compreensível. O problema é que eu nem jogava e sempre era comentado pelos outros, enquanto Lippi, não importa quanto tentasse, não conseguia fazer as pessoas gostarem dele e não aceitava. Ele quis me destruir, me aniquilar, mas não teve sucesso. Ele era apenas um treinador e não um grande técnico
 
Em 2001, finalmente se transfere para o Brescia, onde já assume o status de quase ex-jogador, as lesões são cada vez mais mais constantes. Mesmo assim, e aos 35 anos, uma temporada antes da Copa do Mundo, Baggio tem constantes lampejos de craques, marcando alguns belíssimos gols e boas atuações nesse período, chega a ser cotado para a Copa de 2002, Mas uma derradeira contusão, cela negativamente o período.

Na partida que marcou a sua despedida, em 16 de maio de 2004, contra o Milan no San Siro, foi substituído a dois minutos do fim para ser aplaudido por três minutos pelas 80.000 pessoas presentes no estádio. Após a partida, sua camisa 10 seria aposentada pelo Brescia, que não se recuperou da retirada de seu maior astro: o clube seria rebaixado à segunda divisão justamente na temporada que se seguiu após a saída do ídolo.